O ARTIGO A SEGUIR É DO IR. AFONSO MURAD, PEDAGOGO E DOUTOR EM TEOLOGIA, QUE FALA DE EXAGEROS EM CERTAS DEVOÇÕES, DE ALGUMAS ORAÇÕES E CANÇÕES MAL REDIGIDAS COMO ESTA QUE ELE ANALISA. MUITO INTERESSANTE E PRÓPRIO PARA O MOMENTO:
"Certa vez, tive uma afta na boca. Recomendaram-me que
aplicasse tintura de própolis, diluída em 70% de água. Não entendi a razão.
Pensei comigo: se é bom, porque diluir? Felizmente, descobri a resposta antes
de usar o remédio. Se utilizasse o concentrado, a tintura queimaria a minha
mucosa bucal, em vez de curá-la. Guardei esta lição prática: até o bom remédio,
natural, com poucas contra-indicações, deve ser usado com equilíbrio, na medida
cert. Caso contrário, provoca mais malefício do que cura.
Este princípio tão simples vale também para a devoção. Nós,
católicos, reconhecemos que as práticas devocionais são boas, pois nos levam a
viver em sintonia com Deus e a seguir Jesus intensamente. No entanto, todo
exagero faz mal. É como o bom remédio, fora da medida adequada: pode destruir
em vez de curar.
Atualmente, presenciamos um exagero de devoção no
catolicismo. Em alguns casos, o remédio se parece com uma doença. Simplesmente,
porque não há limites. E tudo que se faz sem critérios e limites, corre o sério
risco de decair em extremismos. No campo religioso, isso se manifesta na
intolerância e na miopia espiritual. As pessoas passam a condenar a todos o que
não pensam como elas e são incapazes de se auto-criticarem. Mesmo que estejam
recheadas de boas intenções.
Há alguns dias recebi um canto sobre Maria. Para quem está
mergulhado neste excesso de piedade, parece sublime, belo, perfeito.
Intitula-se: “A primeira que comungou”. Veja:
A primeira que comungou foi a Virgem Maria
A primeira que recebeu Jesus no coração
A primeira que anunciou foi a Virgem Maria
A quem gerou na fé o profeta que de Isabel nasceu.
Foi por ela que aconteceu a primeira adoração
E quando os magos a encontraram
Houve a primeira grande exposição.
Mãe capela do santíssimo sacrário do amor
Expõe para nós teu filho
Mãe capela da santíssima morada do senhor
Expõe para nós teu filho
Primeiro ostensório do Senhor.
O Concílio Vaticano
II, ao promover uma grande renovação da Igreja, pediu que voltássemos à fonte
do Evangelho e das primeiras comunidades cristãs. No capítulo 8 do documento
sobre a Igreja, intitulado “Lumen Gentium”, apresenta a figura de Maria na
dosagem saudável. Diz que Maria deve ser compreendida em relação a Cristo e à
Igreja. A partir dessa orientação, confirmada anos mais tarde por um lúcido
documento do Papa Paulo VI sobre o Culto a Maria (Marialis Cultus), se busca
uma devoção mariana equilibrada, bem dosada.
Infelizmente, não é o
que se vê na música acima. O uso exagerado da analogia, ultrapassando o bom
senso, leva a afirmações que não são corretas. “Comungar”, no sentido de
participar da ceia do Senhor e receber seu corpo e sangue, aconteceu em
primeiro lugar com os discípulos de Jesus, antes de sua paixão. Se Maria esteve
lá, também tomou parte deste momento que resume a vida, morte e ressurreição de
Jesus. Mas dizer que ela foi a primeira que comungou extrapola o bom senso e
não retrata o que aconteceu.
Devemos usar com
cuidado as analogias ou as figuras de linguagem, para não dizer coisas
ambíguas, que escandalizam outros cristãos, inclusive os próprios católicos.
Não seria uma imagem inadequada e anacrônica (fora do nosso tempo), dizer que
Maria é o primeiro ostensório? Tal afirmação não tem base bíblica e nem raízes
nos Pais e mães da Igreja dos primeiros séculos.
A linguagem
devocional, quando usada sem limites ou critérios de verificação, acaba
produzindo um fenômeno parecido com os termos esotéricos: só pode ser
compreendida por quem está dentro do movimento dos iniciados. Aos outros, soa
como algo estranho ou sem sentido. Para quem está mergulhado num devocionismo,
não há limites em usar as figuras de linguagem. E aqui está o grande problema.
Lentamente, Maria se torna mais importante do que Jesus. E o Jesus da devoção
também está distante do nosso mestre e Senhor, apresentado nos Evangelhos.
A devoção exagerada
não cura. Ao contrário, lentamente leva a terríveis desvios.
Maria merece nosso
respeito. A devoção a ela é legítima. Mas não pode extrapolar o bom senso.
Cultivemos a lucidez!
Maria e Jesus
agradecem... A humanidade também".
Napoleão